sábado, 29 de novembro de 2008

EM FRENTE À IGREJA

Tenho definitivamente que dedicar este texto à Diana, que todos os dias atura as minhas angústias, as minhas revoltas interiores, os meus acessos de loucura. Obrigada Di! =)

Normalmente não falo da minha vida publicamente. Ninguém tem nada a ver com isso, nem eu com a dos outros. Mas de momento, depois de uma experiência socialmente zoológica, tenho que sair da minha rotina literária para me expor por uns minutos, dependendo da vossa paciência.

Dias atrás fiz uma viagem com duas amigas por Portugal. Viagem curta, mas libertadora. Parámos uma noite em Portalegre, visto que tínhamos conhecidos por lá. De manhã, ao acordar, vou com a Diana até ao monte que mais nos despertou a atenção. Alto, com uma escadaria imensa. Uma igreja no topo. Decidimos que andaríamos até lá. Assim foi. Caminhámos, subimos, seguimos um rasto invisível que a natureza nos deixou. Pelo caminho fomos encontrando árvores de fruta e comendo. Nada sabe melhor pela manhã que uma peça de fruta suculenta, biológica, pura. Fomos seguindo, deparámo-nos com um par de cães que nos fizeram derreter. Olhos aprisionados. Encontravam-se num espaço de um metro quadrado, se tanto. Gostávamos de soltá-los, mas quem somos nós para nos opormos às leis da Natureza?

Continuámos o nosso caminho conversando, rindo, angustiando. Pensando. Com a Diana não preciso de muita palavra. Compreendemo-nos perfeitamente sem emitir qualquer tipo de som.

Finalmente conseguimos chegar ao cume do monte, para dizer a verdade, ia literalmente morrendo no meio daquelas escadas infindáveis. As pernas doíam, os pulmões apertavam e a cabeça rodava. Aguentámos. Chegámos ao tão desejado monte. Cheias de sede, por certo desidratadas de tanto esforço corporal. A igreja, ao lado de uma pequena casa de habitação (onde nos apoderámos da mangueira imediatamente!), estava fechada. Com pena nossa.

Ficámos as duas caladas a observar a paisagem, os campos alentejanos com uma paleta de cores fantástica. Aqueles verdes, os castanhos… um pouco de ocre aqui e ali. Só visto mesmo, para conseguir crer.

Depois de um momento introspectivo como este. Depois de termos puxado as energias ao máximo, resolvemos deitar-nos um pouco no chão. À beira do campo, em frente à igreja. Adormecemos. Por dez minutos recebemos a energia que a Mãe Terra nos ofereceu. Por dez minutos descansámos como nunca. Por dez minutos fui totalmente feliz, dotada de uma imensa paz. Elevei-me num alto astral. Só os sentidos estavam apurados. Não tinha nada comigo, mas fui realmente feliz.

Depois desses tão mágicos minutos fomos acordadas por uma parelha de imbecis. Sei que cortei a poesia toda deste texto repentinamente, mas não tenho outras palavras para descrever estes senhores. Parelha-de-Imbecis. Dois meninos, com os seus vinte e poucos. Camisa aos quadrados daquela marca que eu nunca hei-de cheirar. Os óculos de duzentos euros para o estilo. Dois carros, do mais alto calibre, com mais quatro pares de imbecis lá dentro. Vou-vos relembrar que nós nos encontrávamos deitadas no chão, em plena terra energizante. E o que se faz quando se vê duas raparigas simples a dormir em solo térreo? Chamam-nas. Fazem perguntas idiotas. Acordam-nas à pedrada… sim, meus amigos. Verídico. Ao início não ligámos. Levantámos a cabeça, mas dado ao cenário básico com que nos deparámos, achámos que era gastar paleio em vão. Queríamos continuar os nossos sonhos naquele ambiente fantástico. Mas… os rapazes continuavam a atirar pedras (atenção! Eram pedrinhas pequenas e eles atiravam devagar, de maneira a não magoar… realmente não sei o que será pior, atirar uma pedra a um cão para atingir ou atirar amendoins a um elefante com um sorriso idiota só porque está preso), como disse… eles atiravam os calhaus como se nós estivéssemos enjauladas num zoo. Mas divertiam-se. Riam. Sorriam. Achavam o acto mais hilariante das suas vidas. Bateu-me forte. Bateu-me forte aquela atitude. Não pelo acto físico, mas pela atitude medíocre que presenciava. Mais forte me bateu um calhau maiorzinho nas costas, que, num rasgo de estrica electrificante, levantei-me e dirigi-me a eles… não sei onde fui buscar aquela energia. Eu tinha ódio nos olhos. Raiva. O meu corpo estremecia por fora e por dentro. Dirigi-me àquela gente com tanta rapidez com que me levantei. Tinha levado uma injecção de adrenalina psicológica e pura. Assim que me cheguei perto deles, recuaram uns passos. Olharam uns segundos para mim, estava com calças rotas, a roupa suja da terra, descalça e o cabelo todo em pé pela real falta de banho ao longo da viagem. Até umas pedrinhas do solo tinha cravadas na pele da minha bochecha. Juro, se alguma vez alguém nestas condições e a transbordar de raiva me abordasse com esta rapidez, eu borrava-me literalmente de medo…

Aproximei-me e num êxtase de adrenalina comecei a vomitar sentenças que não sei donde vieram. Fui apoderada por uma diarreia verbal, nunca antes experienciada.

Disse-lhes tudo o que tinha a dizer, sem qualquer pudor. Ainda tentei voltar atrás, deitar-me e relaxar, mas não consegui. Muitas mais coisas tinha para vocalizar, para saltarem cá para fora, para serem cuspidas directamente para os ouvidos das pessoas certas. Aquilo que verbalizei, naqueles minutos intensos, não foi directamente para eles, mas para todos os semelhantes putrefactos com que me deparo todos os dias. Foram eles que ouviram.

Não lhes toquei. O único toque físico que fiz foi mesmo quando me agarrei ao colarinho da bonita camisa de um deles, aproximei-me da sua cara e disse com ar de tresloucada: “Com esta camisa eu e a minha filha comíamos durante uma semana. Com esses óculos, matavas a fome a muito boa gente.” Quando tive esta reacção estava com meio corpo enfiado pela janela do carro deles. As portas estavam trancadas. A princípio riram-se mas quando começou a doer a consciência, nem sequer nos olhos me olhavam. Estavam presentes várias pessoas. Homens e mulheres. Dirigi-me a todos sem excepção. Referi que andavam a matar a Mãe Terra, que nos andavam a matar a nós. Que éramos todos semelhantes, desde a lombriga ao Homem. Porquê inferiorizar um ser por ele nos parecer menor? Basicamente foi isso que aconteceu…

De tudo isto, espero que tenha aberto uma luz a alguém. Um acesso de loucura destes, completamente descontrolado, não se vê todos os dias. Habilitei-me a levar porrada daquele batalhão. Não levei. Porquê? Não faço a mínima ideia. A única certeza que tenho é o ódio que senti, nunca antes sentido. Uma encarnação da Mãe Terra no meu corpo. Uma revolta. Depois desta situação chorei. Chorei de raiva compulsivamente durante duas horas. Outros dois dias a chorar aos poucos. Ainda hoje, uma semana depois, corre-me a lágrima no rosto da experiência mais libertadora que tive. Até secarem completamente. Ou não.

Espero que um dia os rapazes que presenciaram o meu acesso de loucura e levaram um sermão directa ou indirectamente, leiam este texto. Desejo-lhes toda a felicidade do mundo. Libertem-se desses trajes desconfortáveis, dessa mente fechada, desse preconceito social. Pensem antes de agir, nunca se sabe onde a Mãe Terra vai estar a encarnar no momento.

Sorriam. Sejam Livres.

Raquel Ançã

29 Novembro 2008

2 comentários:

MianaDandelion disse...

Raquel, a minha resposta a tua ultima mensagem está no meu blog! obrigada...* um dia estaremos ainda mais perto uma da outra, pegamos no carro mais venhinho que existir e vamos viajar por Portugal... sem mapa.

a tua maninha,

Miana

Anónimo disse...

;) e mais uma vez as tuas palavras fizeram-me chorar... A Infância, doce infância... Saudades mana* saudades...